Depois de muitos acontecimentos em nossa cidade, eu fiz questão de republicar aqui em meu blog esse texto, que mostra o momento atual da nossa conjuntura politica de Parauapebas. Apesar do texto ser longo, vale a pena ler.
PÂNTANO AZUL
No fundo, Mestre Sist sabia que aquele lugar era apropriado para desnudar os mais íntimos e originais sentimentos do ser humano. Toda a personalidade, todos os desejos inconfessáveis, todas as luxúrias e ganâncias do ser humano apareciam de forma cristalina quando ele mergulhava no pântano.
Num distante reino localizado numa próspera região dos confins da terra, havia um misterioso pântano azul. Ele ficou assim conhecido porque era envolvido por uma intensa e brilhante luminosidade de tom azul claro, mas tão forte que cegava quem ousasse a olhar diretamente para ele. Esse pântano era cercado de histórias e magias e ninguém sabia o que era real ou o que era lenda. A própria luz que irradiava já era bastante para reforçar o mistério que envolvia o lugar.
O pântano azul despertava nas pessoas os instintos mais selvagens e primários que o ser humano já experimentara. Havia um magnetismo que atraía o olhar e atenção de todos, e, mesmo sendo totalmente desconhecido e misterioso, a população daquele reino vivia tentando entrar no local e desvendar seus mistérios. Corria o boato que quem ousara entrar no pântano fora transformado numa espécie de andrógeno e perdera todas as características humanas. As histórias que corriam de boca em boca e se espalhavam como rastilho de pólvora atribuíam ao pântano todas as deformidades do ser humano. Se alguém enlouquecia era porque havia mergulhado no pântano; alguém começava a mentir ou perder a vergonha, com certeza esteve no pântano azul; se o elemento era ladrão, atribuía ao pântano; Zezinho era saudável e está sendo corroído por uma misteriosa doença, depois de ter mergulhado no pântano; Mariazinha era uma mulher direita, boa mãe, boa esposa, religiosa fervorosa, e agora anda roubando, mentindo e enganando as pessoas. Culpa do pântano; fulano era feliz e agora está morrendo de depressão, depois de uma curta temporada no pântano.
Mesmo com todas as desgraças e malefícios atribuídos ao pântano azul, inexplicavelmente todos queriam entrar lá. Ninguém sabia explicar tal magnetismo e tamanho poder que aquela luz azul tinha a ponto de atrair loucamente quem estava fora e manter preso quem conseguia entrar. O fato é que os agraciados pelo grande mestre do pântano azul se debilitavam moral e fisicamente em pouco tempo. Reclamavam, choravam, se lastimavam por ter entrado ali, mas inexplicavelmente queriam permanecer e quando chegava o período de sair do pântano fazia todo tipo de sacrifício para ali permanecer. Alguns vendiam a própria mãe e até a alma ao diabo, a fim de permanecer por mais tempo no que eles próprios chamavam de “inferno azul”.
O que estava por trás de tanto mistério? Que segredos eram guardados no pântano azul? Como penetrar naquele local tão protegido, tão temido e tão cobiçado por tanta gente? O que de fato existia por trás daquela misteriosa luz azulada, tão forte que impedia os curiosos de se aproximarem? Do que era composta aquela matéria tão bela, tão preciosa e tão atraente? Que magnetismo era esse que atraía a atenção de todos, mesmo com tantas deformidades que causavam no ser humano? Esse é um segredo que todos tentam desvendar e até o momento não foi possível, pois quem sai do pântano azul sai com o cérebro tão deformado que não diz coisa com coisa e nem desperta a credibilidade em ninguém. Por enquanto, ainda estão tentando preparar uma mente privilegiada e superior que seja capaz de mergulhar no pântano, desvendar seus mistérios e sair incólume para contar a todos. Por enquanto, estão só tentando (…)
PARTE II
O grande mestre do pântano azul
O pântano azul com seus mistérios e segredos era guardado e protegido pelo Grande Mestre Sist. Ele era um ser enigmático e tão misterioso quanto o pântano que guardava. Despertava nas pessoas uma mistura de medo, pavor, asco, admiração, inveja, respeito, repugnância e outros sentimentos contraditórios. Ninguém sabia de onde vinha seu poder e muito menos a quem servia. O fato é que mantinha forte influência sobre todos e ditava as regras dentro e fora do pântano azul. As pessoas viviam cercando-o em busca de orientações, de favorecimentos e de suas bênçãos para se aproximarem do temido pântano.
Mestre Sist cuidava para que os segredos que envolviam aquele lugar ficassem guardados a sete chaves. Dizia de forma lacônica que todos precisavam do pântano para manter o equilíbrio, o controle e a ordem entre os homens que viviam em sociedade. Assim, organizava um complexo sistema de escolha a cada quatro anos, onde um grupo de “sortudos”, após passar por duras provas, era “abençoado” e recebia a autorização para penetrar no pântano azul e desfrutar dos seus misteriosos benefícios.
A cada período de escolhas, Mestre Sist cuidava para que um maior número de pessoas se habilitasse para a grande disputa. Assim, atribuiria mais importância ao evento. Apesar do temor, dos mistérios, das histórias tenebrosas, das deformidades que causavam no ser humano, havia uma força que atraía as pessoas para aquele lugar. No geral, costumavam aparecer até duzentas vezes mais candidatos do que o número de vagas ofertadas. Esses candidatos precisavam passar por um teste até mesmo para se habilitarem para a disputa e os critérios eram cada vez mais rigorosos. Dizia-se que para se candidatar para fazer parte do Conselho do Pântano era preciso ter coragem, ter muito dinheiro e pouco escrúpulo.
Algumas características eram mais exigidas aos candidatos para o Grande Conselho do Pântano. Teriam que ter muita habilidade, muito poder de convencimento, muita astúcia, muito poder de sedução e, principalmente, a capacidade de mentir e enganar o maior número de pessoas sem que ninguém percebesse. Além disso, teriam que contar com padrinhos influentes e fazer parte de uma organização que lhe concedesse o registro que legitimava o indivíduo para a disputa. O período da disputa era longo e penoso para provar a resistência dos postulantes. Apesar de o Mestre Sist fazer parecer que havia regras bem definidas, na verdade o jogo era um grande vale tudo com muita manipulação.
Os envolvidos agiam como fantoches e acreditavam estar fazendo parte de um jogo aberto onde teriam que mostrar suas espertezas e qualidades. Assim, faziam de tudo: mentiam, roubavam, trapaceavam, traiam, se endividavam com os agiotas de plantão, faziam acordos espúrios que sabiam impossíveis de serem cumpridos, matavam, trocavam de aliados e até abandonavam as próprias famílias e amigos. Porém, tudo teria que ser feito de forma que ninguém percebesse. O mais importante era parecer que o postulante ao cargo era uma pessoa acima de qualquer suspeita, de reputação ilibada e dedicada a alguma causa nobre.
Mestre Sist com sua onipotência dominava todo o processo e às vezes brincava com os postulantes. Alguns realmente eram homens e mulheres com boas intenções que tinham seus trabalhos baseados na ética e no compromisso social. Acreditavam que tinham que fazer parte do Conselho do Pântano Azul para melhorar a vida do seu povo. Eram chamados de ingênuos e na maioria das vezes não tinham a menor chance na disputa, pois eram engolidos pelos que tinham poder e capacidade de manipulação. Porém, como um teste, o Mestre Sist manipulava e permitia que alguns desses ingênuos se credenciassem para entrar no pântano. Falava nas entrelinhas e de forma enigmática que o pântano precisava de algumas almas boas para manter seu equilíbrio e satisfazer ao seu ecossistema. Um dia, quem sabe, alguma alma boa conseguiria entrar e sair do pântano azul sem se manchar e sem perder sua essência! Esse era um grande desafio que ainda não fora cumprido.
Assim, em um período predefinido, acontecia a grande disputa que envolvia e mobilizava toda a cidade daquela próspera região dos confins da terra. Era um acontecimento sem igual e a cada período reforçava ainda mais os mistérios daquele lugar de luz azulada que continuava cegando e atraindo as pessoas (…)
PARTE III
O grande conselho do pântano azul
Mestre Sist estava eufórico. Tudo havia transcorrido na maior regularidade e o resultado da eleição para a escolha do Grande Conselho do Pântano Azul não poderia ter sido melhor. Ele manipulava tudo e a todos, mas de forma inteligente para parecer que tudo era um jogo aberto e democrático onde venceriam os melhores, os mais preparados. Porém, apesar de manipular, Mestre Sist dava corda e deixava a disputa transcorrer livre em certos momentos para testar o potencial dos participantes. Assim, sempre corria o risco do resultado não sair de acordo com seus desejos. Em algumas ocasiões isso lhe custou a escolha de um conselho totalmente diferente do planejado, causando desequilíbrio ao pântano. Mas bastou fazer alguns ajustes na eleição seguinte que tudo voltou ao normal.
O dia da escolha foi perfeito. O povo já comemorava antecipadamente o resultado, como se fosse a coisa mais importante e sagrada da vida. Era engraçado de se ver a reação da população daquele lugar nos confins da terra: alguns choravam desesperadamente, outros sorriam histericamente; muitos soltavam fogos de artifício e desfilavam em carros abertos pelas ruas da cidade; outros reagiam violentamente ao resultado e até rompiam velhas amizades; algumas igrejas faziam vigílias de orações e conclamavam os fiéis para participarem do processo; líderes religiosos perdiam o senso de religiosidade e mergulhavam de cabeça na escolha; as pessoas importantes da cidade, líderes comunitários, empresários e trabalhadores se envolviam tanto que esqueciam os problemas do cotidiano. De uma forma ou de outra, todos se envolviam, até mesmo os que diziam que não davam a mínima às coisas do pântano azul por serem “sujas e inescrupulosas”. Certa histeria coletiva tomava conta da cidade após o anúncio do resultado da escolha.
Mestre Sist estava feliz e radiante com o resultado. Dessa vez confiou nos seus instintos e deixou o processo correr solto, sem muito controle, pois sabia que a cidade estava num estágio tão avançado que naturalmente selecionaria as cabeças mais representativas para o seu projeto de pântano. “A alma humana já está corrompida. Os sentimentos são pérfidos e os interesses são cada vez mais asquerosos. Dessa vez teremos representantes à altura do pântano”, divagava o Mestre, sorridente.
Dezessete representantes da comunidade foram os escolhidos para o Grande Conselho. Dessa vez estava muito bem representado. Todos os sentimentos, todos os interesses, todos os sete pecados capitais se faziam representar ali. Para garantir a continuidade do sentimento e da filosofia do pântano, cuidava para que alguns membros anteriores permanecessem. Assim, não haveria ruptura do sistema e os mais experientes influenciariam os novatos. Mestre Sist sempre deixava que eles escolhessem entre si um pequeno grupo para comandar. Ficava só observando os critérios que os conselheiros inventavam e as estratégias que usavam para comandar o pântano. Sentia prazer em ver como aquele grupo era tão evoluído, a ponto de trapacear e enganar os próprios pares para sentar na “Grande Bancada”.
Como já foi citado anteriormente, Mestre Sist deixava que algumas “almas boas” fossem escolhidas para o Grande Conselho. Ele queria testar o poder e a evolução do pântano azul. Tudo era parte de um grande jogo, onde ninguém sabia quais seriam os vencedores e os derrotados. Uma vez dentro, todos os artifícios seriam usados para macular e corromper essas “boas almas”. O grande desafio seria passar pelo Pântano sem se manchar, sem enlouquecer ou sem perder a vida. Por isso, era comum ouvir frases entre os conselheiros, do tipo, “aqui o sistema é bruto”; “se você não se enquadrar será engolido pelo pântano”; “aqui não tem santo”; “aqui quem é mais tolo desenha uma vaquinha na parede e tira leite dela”; “nesse conselho os mais inocentes dão rasteira no vento”; “ou você se enquadra ou morre”; “o povo tá pouco se lixando para você. Então, aproveite o tempo que lhe resta aqui e faça sua vida…”
No fundo, Mestre Sist sabia que aquele lugar era apropriado para desnudar os mais íntimos e originais sentimentos do ser humano. Toda a personalidade, todos os desejos inconfessáveis, todas as luxúrias e ganâncias do ser humano apareciam de forma cristalina quando ele mergulhava no pântano. Alguns comentavam: “fulano era gente boa e se transformou após entrar no pântano”; “aquela era uma mulher virtuosa e mudou do azeite para o óleo contaminado, após penetrar no pântano”; “cicrano era um religioso fervoroso e hoje é um ser depravado e ladrão…” Mestre Sist apenas sorria, disfarçadamente, e pensava: “Não! Vocês é que não conheciam seus semelhantes. O pântano azul não contamina ninguém. Apenas tem o poder de revelar a verdadeira identidade do ser humano”.
Assim, o Mestre Sist continuava observando o desenrolar dos fatos naquele Grande Conselho composto por dezessete membros. Tinha esperança de encontrar uma boa alma verdadeira que o desafiasse. Quem seria o indivíduo que mergulharia no pântano azul e sairia incólume para iniciar outro ciclo? Até aqui, só um ser conseguiu essa façanha.
Mestre Sist aproveita a ocasião para desejar a todos um Feliz Natal e um Novo Ano cheio de saúde e paciência para enfrentar os desafios que o pântano azul continuará proporcionando.
PARTE IV
A relação de amor e ódio entre os conselheiros do pântano e os aldeões
O Grande Conselho do Pântano era composto por 17 componentes, sendo 13 cavalheiros e quatro damas. Apesar das mulheres serem a minoria naquele distante reino, poucas se atreviam a se aventurarem naquelas paragens. Grupos feministas pregavam que “lugar de mulher é no Grande Conselho”, mas, na hora da escolha, poucas conseguiam atrair a atenção dos eleitores. Porém, as que conseguiam chegar ao pântano, agiam de tal forma que se igualavam ou até superavam os homens em todos os quesitos.
Passado o momento de euforia da escolha, não se sabe o porquê, mas quase todos se voltavam contra os conselheiros. Alguns se sentiam enganados, outros, desprestigiados, outros traídos e outros ainda, com desprezo por aqueles que tanto torceram para estar ali. Parecia uma maldição, mas quase todos na grande aldeia passavam a hostilizar os conselheiros. “Ladrões, prostitutas, traíras, corruptos, bandidos, vendidos”, eram os adjetivos mais carinhosos atribuídos a eles.
Mestre Sist observava e se divertia com a situação. Ver os conselheiros do pântano se digladiando e sendo hostilizados pelos aldeões era música para sua alma. Observava como esse povo que, antes, declarava amor eterno aos conselheiros, agora tratava-os com tanto desprezo. Por um lado, os postulantes ao cargo de conselheiro tinham que prometer tudo a esse povo, tinha que bajular, mentir e trapacear; por outro lado, o povo seguia fielmente a esses postulantes, como sendo líderes infalíveis e donos de todas as virtudes, mas no fundo, esperavam dividir as vantagens prometidas do pântano. Afinal, quem enganava quem? “Pobres conselheiros, pobres eleitores”, divagava mestre Sist enquanto acariciava sua longa barba branca.
Durante a disputa, via-se de tudo: desocupados aproveitavam para ganhar uma graninha para distribuir santinhos nas ruas ou balançar bandeira nas encruzilhadas, especialistas vendiam seus dotes para dar uma cara moderna e honesta aos postulantes, líderes vendiam seus rebanhos com promessa de recompensa farta, executivos patrocinavam campanhas em troca de favores posteriores, mercenários vendiam apoio por um “modesto” pagamento, de tudo acontecia. Havia até os aproveitadores que acampavam nas portas das casas dos postulantes para conseguirem algum bem como tijolos, cimento, combustível, dentaduras, cestas básicas, entre outras coisas. Tudo em nome da boa fé e da boa moral. “Uma mão lava a outra e as duas juntas lavam a cara”, esse era o lema.
Quase todos declaravam que odiavam o pântano azul, mas, inexplicavelmente, no período da escolha, quase todos se envolviam apaixonadamente. Havia períodos em que a disputa era tão acirrada que as pessoas eram tomadas por uma espécie de transe, de alucinação. Alguns sábios falavam que era o efeito da luz azulada que emanava do pântano que deixava todos os envolvidos alucinados e entorpecidos. Velhos amigos viravam inimigos, e, inimigos se transformavam em aliados. Um velho filósofo definiu essa realidade com a seguinte frase: “O pântano tem o poder de afastar os amigos e juntar os inimigos”. Por isso, os mais cautelosos evitavam brigas mais acirradas, pois o inimigo de hoje poderia ser útil como aliado amanhã.
Durante as disputas para o Grande Conselho do Pântano, geralmente prevalecia a lei do vale tudo, do mais forte. Para equilibrar essa disputa, e dar um ar de serenidade, mestre Sist tratou de botar uma ordem aparente na bagunça. Afinal, todos tinham que achar que era a coisa mais séria do mundo. Assim, criou mecanismos de regulamentação para não descambar para a bagunça total. Nomeou um poder supremo para fiscalizar os postulantes aos cargos de conselheiros e chamou-o de Dr. Torga. Dr. Torga deveria cuidar para que tudo parecesse normal e organizado, e tinha a ordem de vigiar de perto e, quando fosse conveniente, punir os postulantes. Porém, deveria fazer o jogo e favorecer uns, e tirar outros da jogada. Esse era o grande desafio que tinha que ser cumprido à risca para não causar desequilíbrio no pântano.
Mestre Sist se surpreendia e se orgulhava com a evolução dos postulantes. Mesmo com todo o rigor aparente que era imposto pelo Dr. Torga, muitos conseguiam driblá-lo e criavam mecanismos para enganá-lo. Esses, sempre conseguiam superar os limites e fazer o Dr. Torga de bobo. “Esplêndido, genial! É disso que o pântano precisa para se fortalecer!”, bradava Mestre Sist. “A julgar pela evolução que estamos alcançando, em breve chegaremos ao ápice e essa espécie se extinguirá por si só, numa espécie de antropofagismo”, filosofava o mestre.
Após o grande desafio da escolha dos conselheiros, passada a euforia da festa, agora os pobres mortais tinham que trabalhar, ou pelo menos demonstrar que estariam trabalhando. Duas vezes por semana o Grande Conselho se reunia para tratar de assuntos de interesses da aldeia. A grande sala de audiência era construída num local estratégico, onde os visitantes não pudessem vislumbrar de fato o que se passava no pântano. Todos podiam comparecer e participar livremente, pois, não havia perigo de ninguém descobrir os segredos que, de fato, aconteciam ali. Os conselheiros ficavam confinados numa espécie de redoma de vidro, de tal forma, que não pudessem ser hostilizados ou tocados pelos participantes. Dizem até que a redoma de vidro era para proteger os aldeões e evitar que fossem contaminados pelos membros do pântano.
O grande problema é que agora, após a vitória, os aldeões apresentavam as faturas aos conselheiros do pântano, que, na maioria das vezes, eram impossíveis de serem quitadas. Daí, a explicação para a mudança de humor repentina, para a alteração brusca entre o amor e o ódio. Muitos argumentavam que os aldeões, no fundo gostavam de serem enganados, e que, se o postulante ao cargo não tivesse a capacidade para enganar, jamais alcançaria o objetivo. Por um lado, aldeões espertos buscavam tirar vantagens pessoais à custa dos postulantes ao conselho; por outro lado, os postulantes se aproveitavam desse espírito mercenário dos aldeões para galgarem as melhores posições no pântano. Assim, surgiu a grande dúvida existencial: “Quem é mais corrupto? O conselheiro ou o aldeão? Existe vítima nesse jogo?”.
Assim, seguia a vida no pântano, pleito após pleito. As reuniões eram tão previsíveis que muitos aldeões nem apareciam mais. Outros marcavam presença pelo menos uma vez por semana por acharem engraçadas. “Era um verdadeiro circo dos horrores gratuito”, diziam alguns frequentadores. De tudo se via naquele recinto: oradores dissimulados, simulação de brigas violentas, brigas sem simulação, gente espumando pela boca como cachorro louco, palhaços sem graça tentando arrancar risos da plateia, a madame louca indignada pela redução de sua verba de maquiagem, um velho senil pregando a moralidade com os bolsos entulhados de biscoitos roubados da merenda escolar, uma conselheira pregando o fim do mundo e um mentecapto jurando que ouviu ordens do próprio Deus. Havia até quem só grunhisse e, outro que só balançava a cabeça. Tinha também um ser esquálido que quase não falava, mas de vez em quando, tentava imitar um sábio e proferia algumas palavras que nem ele compreendia.
Assim seguia a rotina do Grande Conselho, que de fato, parecia um circo dos horrores em uma apresentação de um espetáculo macabro. Aqueles seres, que outrora eram normais, e, que agora, pareciam zumbis, eram de dar pena. Todos continuavam indagando que mistério havia naquele pântano para deixar homens e mulheres naquela situação!
FINAL
O guardião da caixa forte e o segredo da mala preta
Ao longo dos anos, Mestre Sist cuidou para aperfeiçoar o pântano azul e atrair sempre mais almas para o seu projeto. Era importante manter o mistério e fortalecer os princípios regimentais que transparecesses normalidade na casa.
Além do Grande Conselho, havia o guardião da caixa forte que tinha o poder de organizar a aldeia e prover o desenvolvimento e o bem estar dos aldeões. Esse guardião também era escolhido de forma direta num pleito disputadíssimo, e o cargo era muito cobiçado por todos, pois além do poder de gerenciar a caixa forte, era laureado com poderes supremos que lhe conferiam prestígio e riquezas incalculáveis. Bastaria se submeter, após ser escolhido, aos ditames do mestre e ter esperteza o suficiente para se livrar das armadilhas do Dr. Torga. Se conseguisse, o céu seria o limite.
Cabia ao Grande Conselho o controle e a fiscalização do guardião da caixa forte. Era tudo bem estruturado para conferir poder aos conselheiros e não deixar o guardião pensar que era deus. Assim, qualquer medida, qualquer decisão do guardião, teria que ser chancelada pelo Grande Conselho. Se por um lado, o guardião da caixa forte tinha poderes privilegiados, por outro lado, esses poderes dependiam dos conselheiros. Essa foi uma forma inteligente que Mestre Sist criou para manter o equilíbrio e, ao mesmo tempo, acirrar as disputas entre os poderes. Afinal, nesse jogo, vale a criatividade para trapacear, para dominar e para subjugar os mais fracos.
Com o poder de controle que o Grande Conselho exercia sobre o guardião, foi enfraquecendo a sua influência, de maneira que algumas figuras ilustres caíram em desgraça no exercício da função. Foi então que há tempos atrás, um guardião teve a brilhante ideia de explorar a cobiça e a ganância dos conselheiros. Passou a fazer acordos, a oferecer privilégios e criar cargos para contemplar os conselheiros e seus parentes. Sabendo que as mentes dos componentes do pântano estavam corrompidas, usou e abusou desse expediente exaustivamente, até que nem um componente soubesse mais viver sem esses favores extras. Além disso, usou de artimanhas para dividir o grupo e provocar disputas entre eles.
Esse guardião que teve a grande ideia de seduzir os conselheiros com privilégios extras fez escola no pântano azul e influenciou toda uma geração, de tal forma, que até os dias atuais esse modelo é seguido e aperfeiçoado pelos seus sucessores. Agora, todo guardião que tem o privilégio de assumir a caixa do tesouro, cuida para seduzir principalmente àqueles que foram seus adversários na disputa. Assim, terá garantida toda a tranquilidade para usufruir do tesouro sem nenhum aborrecimento. Por sua vez, os conselheiros tratam de juntarem-se em grupos para fortalecerem-se e arrancar mais benefícios do guardião. Tudo dentro da mais perfeita ordem e em nome da moral, dos bons costumes e, até dos princípios religiosos, mesmo que as crianças morram à míngua, mesmo que famílias inteiras de aldeões padeçam, mesmo que o reinado apodreça e vire ruínas. O importante é manter o sistema em perfeita harmonia.
Um certo guardião do tesouro que presidiu a aldeia num período crítico, inventou uma arma secreta para acalmar os conselheiros do pântano que apresentavam comportamento rebelde. Com o livre arbítrio que o Mestre Sist dava de vez em quando para testar a astúcia dos postulantes, vez por outra, alguma pessoa bem intencionada conseguia passar pelo teste e entrar no pântano azul. Diziam que iriam mudar e transformar o pântano e mostrar que ainda havia almas boas naquele lugar, capazes de mergulharem no pântano e saírem puras.
Para evitar problemas de desequilíbrio, e, para continuar reinando soberano gozando de todos os privilégios do cargo de guardião do tesouro, seus antecessores usavam de violência, intimidação, e até assassinato contra os conselheiros e aliados que não dançassem conforme a música. Isso custava muito caro e criava muita desordem e complicação, chegando até a perda da função de uns. Foi então que esse iluminado guardião teve a brilhante ideia de lançar mão de sua arma secreta: tratava-se de uma mala preta que era levada por um emissário e aberta exclusivamente na presença do conselheiro rebelde que estava criando problemas.
Até hoje, ninguém de fora descobriu o misterioso conteúdo dessa mala preta, e o segredo é passado somente de guardião para guardião. Todos os guardiões do tesouro lançam mão desse recurso, uns mais e outros menos. Basta um conselheiro se rebelar, ou ameaçar ruir a estrutura, logo aparece o emissor com a tal poderosa mala preta. Dizem que o sujeito fica transtornado e entra num transe total. Alguns cheiram o conteúdo, outros fecham os olhos e oram em agradecimento, outros choram diante da visão. Depois da visita do emissário da mala preta, os rebeldes ficam mansos como cordeiros e mudam radicalmente o comportamento: se antes odiavam o guardião, agora passam a amá-lo.
Uma característica mais comum de quem recebe a visita do emissário da mala preta, é a mudança de vida. Como num passe de mágica, o sujeito, além de ficar dócil como um carneirinho, muda radicalmente sua situação financeira. Dizem que é o poder da mala secreta que abre a visão para a prosperidade. Se antes, o jetom recebido pelo seu “suado” trabalho não dava nem para as necessidades básicas, agora, sofre a mutação e se transforma em riqueza incalculável. É o verdadeiro milagre da multiplicação.
Cada guardião que entra, cria sua própria mala preta e vai aperfeiçoando para driblar a vigilância do Dr. Torga. Apesar de ninguém saber o conteúdo da mala, ela é proibida e mantida sob o mais absoluto segredo. Alguns curiosos chegaram perto, mas só descobriram objetos sem sentido que cobriam o verdadeiro conteúdo. Algumas vezes chegaram a ver carambolas, laranjas, e até roupas velhas. Outras vezes, no lugar da mala preta, o emissário levava caixa de papelão ou sacola de supermercado.
Com esse moderno sistema de acalmar os rebeldes, os guardiões quase não precisam mais lançar mão de recursos violentos. A mala preta é mais eficiente e mais barata, além de deixar o sujeito em estado de letargia, criando uma dependência perpétua. Uma vez tendo recebido a mala preta, nunca mais o conselheiro seria o mesmo. Aquele espírito de rebeldia era transformado em subserviência, e mesmo que o conselheiro fosse rico, vivia como um mendigo, sempre rastejando sem a mínima dignidade.
Mestre Sist admirava com orgulho a sua criação. “Pobres coitados! Quando vão evoluir a ponto de descobrir que o pântano é composto por partículas extraídas de suas próprias fraquezas? Quando vão se darem conta de que a ambição, o orgulho, a vaidade, o vício, a perversidade, e outras deformidades humanas são matérias indispensáveis para a continuidade do pântano azul?”, divagava o Mestre.
Um dia, quem sabe, uma alma pura mergulhará no pântano e sairá limpa e incólume. Quando isso acontecer, será tão forte que contaminará outros membros e abalará a estrutura do pântano azul. Enquanto isso, Mestre Sist vai brincando e fazendo novas experiências com os que penetraram nesse universo misterioso de luz azulada tão atraente e tão complexo. Cada novo ser que entra no pântano recebe a picada do escorpião e o beijo da borboleta, e a contradição passa a ser condição natural em sua vida. Por um lado, sente que o veneno está destruindo suas entranhas, corroendo sua alma, e, por outro lado, se entrega perdidamente ao jogo da luz. Perde suas asas, mas não abandona o pântano azul.
Texto do livro: (O Escorpião e a Borboleta) do escritor Luiz Vieira.
Cedido gentilmente a esse blog.